O ritual de batismo de um carro novo pode ser algo tão complexo quando o seu projeto de engenharia
Adão e Eva, esses sim, nasceram num paraíso. Puderam ganhar nomes curtos e fáceis de pronunciar em qualquer língua, bons para um trabalho de divulgação global. São palavras começadas com vogal, e isso ajuda a estabelecer a unidade da marca – afinal são obras do mesmo criador (aliás, Criador). Ao mesmo tempo, há uma clara separação de imagem: o som crescente de “Adão” sugere força, enquanto “Eva”, decrescente, inspira acolhimento. Isso também é importante, pois os dois têm público-alvo diferente. E melhor: esses nomes dificilmente seriam motivo de processo por plágio. Como o mundo existia havia menos de uma semana, milhares de ideias ainda estavam inéditas.
Hoje não é mais assim. Palavras geniais como Corvette, Ferrari e Mustang já têm dono. Nossa tabela de carros novos tem mais de 200 nomes (em 1989, eram 34) e vai continuar crescendo, conforme as montadoras aumentam suas famílias. Mês passado, a Honda lançou o City e a Porsche apresentou o Panamera. Em outubro Chevrolet Agile e, agora em dezembro, começou a nascer a picape média Volkswagen Amarok. Haja inspiração.
Criar uma boa marca é tão difícil quanto conseguir endereço no GMail, depois que 146 milhões de usuários já fizeram isso. O Instituto Nacional de Marcas e Patentes tem mais de 500 000 marcas em vigor, e em 2008 foram feitos 120 000 novos pedidos. No mundo, são 4 milhões de pedidos por ano. É tão difícil que surgiram especialistas. Picanto foi ideia da Namebase, bem como Fruitopia (refresco da Coca-Cola) e AAdvantage (programa de milhagem da America Airlines). Outra agência, a Frank Delano, ganhou 100 000 dólares da Honda para dar nome à picape Ridgeline. Cem mil dólares, e olha que não se trata de nenhum Civic. Batizar custa caro.
Numerologia
Mas nem pense em deixar o carro pagão. Uma montadora americana tentou isso, em 1909, na intenção de que o comprador escolhesse por conta própria. Deu certo? Difícil saber, o registro de emplacamentos era feito por nome... Fato é que o modelo passou a se chamar F.A.L no ano seguinte e a empresa (também anônima, conhecida apenas pelo endereço) fechou quatro anos depois. Ou seja, o carro precisa de identificação. Mesmo que seja um número, como sempre fizeram BMW e Mercedes-Benz. Desde os anos 70, os BMW são cartesianos: 525i pertence à Série 5 (maior que o Série 3 e menor que o Série 7) e tem motor de 2,5 litros com injeção eletrônica. Os engenheiros alemães fizeram isso para dispensar a ajuda de marqueteiros (essa gente que não sabe fazer conta...) e também para valorizar mais o fabricante do que o modelo: você diz “tenho um bê-eme-vê”, em vez de recitar o número.
A falta de nome, imagine, virou grife. Acura ZDX e Lexus LS 400 tentam pegar para si parte do prestígio dos alemães. Até a luxuosa Cadillac trocou seus nomes clássicos Seville e DeVille pelas siglas STS e DTS. Mas fique claro, isso só vale para marcas de prestígio. O povo adora criar apelido, e as consequências são imprevisíveis. O Sedan (que não é nome, é formato) virou Fusca – tão bom que foi assumido pela Volkswagen, em 1983, e faz dele o único carro brasileiro a virar verbete no dicionário. Já o 1600 (que não é nome, é cilindrada de motor) acabou tratado como Zé do Caixão.
Ou seja: se o carro é de massa, invente um nome. Sai caro, mas aumenta a margem de lucro. “É ali que você começa a construir a posição do modelo, o jeito como ele será visto pelo dono e pelas pessoas ao redor. O cliente paga, e paga feliz, pela imagem criada em torno do produto”, afirma Cássio Pagliarini, diretor de marketing da Renault, com a autoridade de quem vende Sandero mais caro que Logan, embora sejam basicamente o mesmo carro. O nome nem precisa significar nada. “As palavras Sandero e Mégane não existem no dicionário, são uma aglutinação de letras”, diz Pagliarini. Nomes sem conteúdo nem passado são uma tendência. Evitam disputas por direitos autorais e estranhamentos.
O importador da Kia Motors, José Luiz Gandini, não se importou ao ver que o furgão Best A (que significa algo como “o melhor da classe A”) vinha identificado com letras bem juntinhas, que formavam outra palavra. Encarou a Besta, vendeu para igrejas e colégios. Exorcizado o temor inicial, Gandini fez publicidade em torno do inusitado e viu o furgão representar 80% de suas vendas. Especialistas dizem que o carro bom resiste a um nome ruim e que o nome certo não salva um carro errado. Mas não convém arriscar.
A voz do povo
A GM americana lançou o Buick LaCrosse e teve problema logo no país vizinho. No Canadá, lacrosse é uma gíria que significa... Enfim, procure no Google. E a pessoa que faz lacrosse, nos países de língua espanhola, é chamada de pajero (o que fez a Mitsubishi criar um nome alternativo, Montero). Para saber como a marca será recebida quando cair na boca do povo, as empresas recorrem cada vez mais a institutos de pesquisa.
A escolha do nome costuma começar numa lista de 25 palavras, tiradas de um banco de nomes já registrados pela montadora e também da sugestão das agências de publicidade. O departamento de marketing da empresa derruba os que não soam tão bem e o departamento jurídico investiga problemas de direito autoral. Cinco nomes finalistas são levados às clínicas, pesquisas de mercado feitas em sigilo. “A consulta de nomes é realizada dois anos antes do lançamento do carro. Ele nem sempre está pronto, mas já tem cara e público bem definidos”, diz Rogério Monteiro, diretor do instituto de pesquisas GfK. Potenciais compradores respondem a perguntas como “Essa palavra combina com esse carro?” e “Esse carro combina com você?”. “Geralmente, o nome preferido nas clínicas acaba sendo escolhido”, afirma.
É raro, mas às vezes acontece de a montadora chegar à clínica sem bons nomes para apresentar. “Decidimos ir em frente, e percebemos que as palavras ecologia e esportividade eram muito citadas” diz Antônio Baltar Júnior, gerente de marketing da Ford. “Tentamos vários nomes unindo as duas ideias e assim chegamos a EcoSport, que foi bem recebido e atendia à identidade da marca.” Os utilitários da Ford formam uma família exemplar, de palavras começadas com a letra “E” que sugerem a diferença de propostas, do menor para o maior: EcoSport, Escape, Edge, Explorer, Expedition e Excursion.
Ressurreição
E também acontece de a montadora sair da clínica tão indecisa quanto entrou. A Volkswagen até pensou em mudar o nome Gol nessa última geração, mas a conversa não foi longe e os números de emplacamento explicam por quê: com apenas um ano de mercado, o carro novo já responde por 80% das vendas do modelo, num fabuloso exemplo de transferência de imagem. O caso do Voyage era mais difícil, pois o sedã estava aposentado há 12 anos e nunca foi um tremendo sucesso. “Nossa dúvida era se a imagem residual do nome compensava as vantagens de partir para uma mensagem nova. Foi uma questão muito discutida, tanto quanto a do Fox”, diz Herlander Zola, gerente de propaganda da Volkswagen. O nome foi escolhido a seis meses do lançamento e isso, na indústria, significa a última hora. É preciso tempo para imprimir manuais, fabricar molde para as plaquinhas de identificação, proteger a marca em possíveis mercados consumidores, planejar campanhas publicitárias e encaminhar o registro no Renavam. “A decisão de manter o nome Saveiro foi bem mais fácil. Se o hatch era Gol e o sedã era Voyage, mudar a picape traria um estranhamento desnecessário.”
E tem horas em que a intenção é justamente produzir estranhamento. Os mais atentos vão perceber que a palavra Agile traz algo além da mera ideia de agilidade. Ela foge do padrão dos nomes da Opel (palavras sem significado terminadas na letra “a”) adotados pela Chevrolet brasileira: Corsa, Meriva, Astra, Zafira e Vectra. “Esse ‘e’ no fim tem um significado, sim”, diz Gustavo Colossi, diretor de marketing da General Motors. “Ele avisa ao público que a empresa está mudando por dentro e por fora, e que teremos uma linha de produtos inteiramente nova nos próximos anos.” Tanto significado concentrado na última letra de uma única palavra...
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